SANGRIA

O suicídio de si em troca da desistência, falso cessar-fogo no outro em busca de si mesma, é uma sangria que, daquela forma, não volta. Revolta, contorna, contorce, retorce, disforma. Contrato social assinado no calor de um momento; noutro, passional, rasgado sem arrependimento. O contato com o outro, pressuposto do contato consigo: Eco, repetição oca da própria voz num corpo que bate e descobre decepção do outro lado da face; que nega o olhar outrora entregue sem prece. Agora, por mais que implore, parede alheia, oco. É copo que a mão estende e nunca mais será cheio o suficiente. Sangria em determinantes pontos importantes, à medida que troca segundos por dias, diante de um espelho turvo; superfície embaçada pela incerteza onde a face se perde na névoa pela sede insaciável da própria procura. Floresta em noite sem fogueira e alta névoa dum sonho de Avalon onde as cortinas mágicas do seu afeto até terra firme nunca mais serão abertas. Carícias em extinção de oferta. Núpcias nunca consumadas pela insegurança das decisões tomadas no gargalo do desespero, da nobreza da impulsividade ao ato. Socorro prestado, cura não alcançada. Arrependimento na calçada onde hoje durmo minhas chagas ainda mais abertas que outrora. E não importa o quão confortável seja a cama que dantes fora embarcação em meio à chuva de lágrimas de alegria; hoje é o horror da ausência em feridas abertas sem costura, terminal e indisponível alívio. Hoje, oceano que atravessa cada rio que se faz avenida para outra saída sem parada respiratória; o ar está contaminado, os nervos, aflorados. O peito arfa sem escapatória. E, preste atenção, gentileza nesta expressão que se multifaceta quando o espelho quebra: Há imagens fragmentadas em mil arestas de dor que cortam a visão e impedem a unidade do ser de deixar de ser só. A ilusão não é uma bolha e sim uma chave para o outro lado da história. Pois o que era pra ter sido construído amor foi feito um barraco de medo. Tijolos de apego, cimento de uma paixão que o próprio medo e o apego apagaram. Onde se edificava catedral, restou apenas estrutura frágil que ruiu, e não por falta de tentativas de ser reerguida. Ao final, de capela à choupana. E com a última lufada de erro, a sentença inconstante, delirante e ainda, unilateralmente permanente. Sopro de realidade que cessa uma história cortante. Acolha os estilhaços com a própria língua que outra beijou cada um destes versos. Recolha-se, parte por parte, do dano ao desprezo. Do iminente acaso até o descaso. Ou ainda se revela num espelho translúcido, vidro que não reflete, mas confronta; internalizada fantasia, fantasma ou sombra que se vê através do outro e não no outro. Significado e significante. Do concreto ao abstrato. Do murro no estômago à dor da perda do fôlego pela vida em diante. Perdida busca já antes de iniciada, autojornada na direção errada de quem não merecia. Mas a necessidade de ser compartilhada tamanha dor... Há tanta insanidade na inocência quanto a ausência de algo ainda maior, gritou o trauma em sã consciência. À luz de pegadas neurológicas que a lembrança imprime a cada revisita, sobre memórias de flores mortas refrescadas à primavera quase sem fim. De idas e voltas na simbologia e ressignificação da dor a ser posta para fora de um lado de si, acena o cinismo, de longe, como quem observa e fica. Sangria, resposta incerta e entalada na garganta, repete as mesmas perguntas confusas. Ainda afeta, infecta, erra na cura, acerta na nuca a permanência contra o cansaço da persistência. Perdida luta. Está declarada a felicidade lançada à sorte de uma tempestade! Sangria contra o medo, a morte sem o alcance do corte do fio de luz que a esperança oferece? Quase uma obscenidade para aqueles sem a habilidade de ver entrelinhas. Questionável sanidade? Sangria contra o apego que se vai como poeira, onde um novo vento limpa a dor que era sujeira? Onde há limpeza, outrora sentia-se o odor estático da frieza, sem poesia. Escorre nas possibilidades do que foi e do que ainda continua, fazendo poça, gota a gota, enquanto ainda chora incontáveis vezes; enquanto ao âmago, por si mesma, a alma implora. Esmurra do lado de fora a porta, há tempos trancada do lado de dentro, até que o pulso pereça no corte do contato imediato. Mas não silencia nada aqui dentro: tão barulhenta é a ausência da sua presença enquanto apenas de lembranças sua silhueta é feita. Se amar é deixar-se à liberdade quando do encontro, finalmente; pós-seculares autoconfrontos. Que não haja quem vença e nem perca, muito menos empate, por desistir da concorrência contra si mesmo à anulada persistência do desastre. E o tempo, que girou afiados ponteiros no veneno do desamparo? Escárnio pela perda a culto macabro da permanência! Descarrilha a noção da linear linha na redenção do "para sempre" e do não sem volta. As batidas cessam. O bombear entre aortas e artérias desmorona a ponte entre a safena, impedindo o acesso de tamanha pulsação no cessar do instinto da manutenção da vida. EDU LAZARO

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